É assim, mas não tem que ser

A gente se acostuma a votar em um candidato qualquer por impulso: porque ele é mais simpático, tem mais empatia com o público, mais carisma, porque tem mais dinheiro ou ainda, porque ele já vem de uma família tradicional da política da região, sem nos darmos conta de que o dinheiro é dele e que se ele fosse dividir conosco faria isso sem precisar entrar para a política; e que o simples fato dele ser de uma família  política poderia nos dizer muito se estivéssemos realmente preparados pra enxergar. Enxergar,  por exemplo, o que essa família política já fez de bom ou ruim para o nosso país, estado ou município.

A gente se acostuma a esperar que o político eleito, depois de meses e meses sem nada fazer em prol da melhoria de vida do povo da cidade que o elegeu, dê alguma explicação que nos faça acreditar em sua boa fé.

A gente se acostuma a esperar mais um pouco, a cochichar aqui e ali especulando, tentando entender o que está acontecendo e até torcendo pra que os argumentos do tal político nos convençam de que ele tem boas intenções e só precisa de mais tempo para se organizar.

A gente se acostuma a ter o nosso hospital fechado sem que nenhuma explicação razoável nos seja dada. A gente se acostuma a ser atendido no hospital do prefeito eleito – agora o único em funcionamento –, cujas especialidades médicas são de fachada, assim como todo restante da estrutura, inclusive o atendimento humano. A gente se acostuma a ter uma farmácia básica sem remédios, a ver as famílias sofrendo, as grávidas perdendo seus bebês, tantas pessoas de todas as idades sendo carregadas às pressas pelos familiares para implorarem atendimento na cidade mais próxima, no estado vizinho.

A gente se acostuma até a ver nosso filho morrer porque, afinal, a gente se acostuma a confiar que só se morre na hora certa.

A gente se acostuma a não ter o feijão de cada dia, a mandar nosso filho pra escola para comer a merenda e merenda não ter. A gente se acostuma ao fato dessa escola além de não ter merenda, não ter condições básicas de higiene; dessa escola não ter banheiro para todas as crianças, não ter pias para asseio das mãos, não ter livros, ter salas superlotadas, professores sem condições humanas e didáticas para realizar um bom trabalho; a gente se acostuma com a falta de escola; se acostuma a ver nosso filho recebendo aula debaixo de uma árvore.

A gente se acostuma a ver nosso dinheiro escorrer pelo ralo sendo investido em festas, em marketing pessoal, em inaugurações maquiadas, em holofotes, em aparições espetaculares e  em compra de mídia para esse fim.

A gente se acostuma a tratar funcionários públicos como presidentes, governadores e até prefeitos como se tratavam os nobres da antiguidade e não como trabalhadores que se pensava qualificados para administrar o patrimônio do país, estado ou município.

A gente se acostuma a ver político sendo suspenso por improbidade administrativa e ficar apostando quantos dias ele levará para retornar como se nada tivesse acontecido.

A gente se acostuma a ver “justiça” atropelando a justiça.

A gente se acostuma a não sentir nojo, a não se indignar. A gente se acostuma a bajular para se salvar.

A gente se acostuma a abandonar um soldado aliado na frente de batalha, um soldado que está defendendo nossos direitos, um soldado que visivelmente corre risco de vida para defender uma causa comum, uma causa de todos; um soldado que a qualquer momento pode ser covardemente silenciado pelo poder daqueles que se incomodam com a reação dos poucos que teimam em não se acostumar.

A gente se acostuma, mas não deveria. Porque assim estará fazendo exatamente o que foi planejado para nós, ou seja, nos acostumarmos, deixarmos de reagir. Tentam nos acostumar com tudo isso porque sabem da força que teremos quando tivermos boa saúde e boa educação, o que nos propiciará boa moradia, bom lazer, e principalmente, excelente capacidade de reflexão e reação.

A gente precisa se acostumar a enxergar que, em relação a nós, eles são pequenos, são poucos. E que nós somos grandes. Nós somos milhares.

 

O NOVATO

Inspirado em “Eu sei, mas não devia” (Marina Colasanti)

 

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